O
DIVÓRCIO
— Alô? ─ Gustavo Mendes pegou a toalha colocada sobre o
guidão da bicicleta ergométrica para enxugar o suor da orelha e não molhar o
celular. Saiu da academia em busca de um lugar mais silencioso, onde a música
não atrapalhasse a conversa.
— Gustavo? É você?
Ele reconheceu imediatamente a voz. Ela sabia que só ele usava o
celular. Porque sempre insistia em perguntar se era ele?
— O próprio. — Ele era sempre
gentil com os outros, mesmo em se tratando dela. — Está tudo bem? Como estão as
crianças? — Para os pais, os filhos são sempre crianças, mesmo quando já estão beirando
os trinta anos e já lhes deram três netos.
— Está tudo bem, as crianças estão bem, estão saudáveis, os netos estão
crescendo feito abobrinhas. — E ela não perdia a mania de falar abobrinhas no
telefone.
— Diz aí, Neusinha, em que posso te ajudar? — Ela só ligava para ele
quando precisava de alguma coisa. Interesseira ao extremo.
Ela odiava quando a chamava de “Neusinha”, quando estavam juntos. Dizia
que “Neusinha” era nome de putinha. Ou melhor, começou a odiar depois de alguns
anos de casada. No começo, dizia que ele era tão carinhoso quando a chamava
assim. Depois de dez anos, começou a reclamar. Aos onze, começou a esfriar. Com
dois filhos pequenos para criar, ele não reclamou. Confessa: até gostei.
Afinal, ela não era grande coisa na cama, mesmo. Cinco anos depois, já eram
dois estranhos dentro da casa. Ela não dormia mais na mesma cama, não sentava
mais à mesa na hora da refeição, enfim, só faltava levantar um muro dividindo o
imóvel.
Nos últimos doze anos, depois da separação e de uma fase de desemprego,
ele conseguiu uma vaga numa empresa no outro lado do país e ela lhe telefonou
umas meia dúzia de vezes, sempre para pedir alguma coisa, de preferência
inútil. Ele tinha certeza que desta vez não seria diferente. Aguardou que ela
começasse a se desculpar por estar ligando em hora tão incômoda, perguntar se
estava muito ocupado, se podia conversar com ela, etc., etc., etc...
Dessa vem, ela não falou nada daquilo. Só falou, incisiva:
— Precisamos conversar sobre nossa separação.
A objetividade da pergunta o pegou de surpresa. Apesar de ele ter sido
o expulso do campo, ela nunca se preocupou em oficializar a situação.
Especialmente depois que soube que paga as custas quem entra com o pedido de
divórcio...
— Pois não, respondeu. — A hora que você quiser... Mas precisamos ir no
cartório que casamos, sabia?
— Você ainda mora naquele apartamento no centro da cidade?
Será que ela está a fim de lhe tirar a única residência?
— Moro sim, porque?
— Só para saber. Pode vir aqui para conversarmos?
A principio, ele pensou em dizer que a distância é a mesma, que o
interesse era dela, etc. e tal. Mas, como estava de férias, resolveu ir.
Afinal, seria bom um passeio numa cidade litorânea. Ele morava em uma cidade
longe do mar, ela morava perto da praia, e nenhuma das duas era a cidade que
moravam quando se casaram. Atualmente, ambos moram a algumas centenas de
quilômetros de lá, em direções diametralmente opostas. Ele confirmou a viagem,
marcando a data para se encontrarem.
Dois anos antes:
Neusa estava sentada na mesa de um bar, no shopping, esperando algumas
amigas para irem ao cinema. Como chegou cedo, resolveu tomar uma cerveja, para
sair da rotina.
Passara metade da vida abominando bebidas alcoólicas mas, depois que
conheceu um garotão com muitos músculos e pouco cérebro, entrou na onda dele e
começou a beber. Isso foi logo depois que se separou, “já estava cansada da
vida monástica com o marido”, como explicava às amigas. O garotão, que tinha
idade para ser seu filho, se mostrou muito melhor na cama e muito mais fácil de
ser manobrado. Fez gato e sapato dele, até que enjoou. Ficaram juntos cerca de
três anos, depois chutou-o sem a menor sombra de remorso, da mesma forma que
fizera com Gustavo.
Passou um tempo sozinha, aposentou-se do serviço público, viajou,
curtiu, namoriscou um e outro, até que, naquele dia no shopping, conheceu o
Doutor Olavo Teixeira. Não muito alto, encorpado, com uma barriga incipiente
caindo sobre a cinta, bem diferente do marido, que era do tipo atlético.
Decidiram que namorariam mas não ocupariam o mesmo teto.
─ Não abro mão do meu espaço e da minha
independência, ela exigiu.
E ele aceitou de bom grado. Só que vivia no apartamento dela comendo,
afinal, ela era uma excelente piloto de fogão e ele um bom garfo. E nunca
dispensavam uma cerveja na refeição. Em pouco tempo, sua circunferência
abdominal quase dobrou. Ela também estufou um pouco, mas nada que se comparasse
ao seu companheiro.
Sutilmente, ele foi se insinuando na vida dela. Descobriu que Gustavo
tinha um bom salário, ou, pelo menos assim ela achava. Que tinham juntos
diversos imóveis. Mas, se ela pedisse o divórcio, iria perder esses bens, pois,
como eram casados pela lei antiga, Gustavo jamais iria abrir mão de sua parte.
─ Acho que você iria ganhar muito mais se, em
lugar de pedir o divórcio, você ficasse viúva, ele brincou.
Ela ouviu mas não brincou. Considerou seriamente a idéia. Comentou:
─ Teria que parecer um acidente, né?
Ele assustou:
─ Você teria coragem?
Ela retrucou:
─ E porque não? Dei quinze anos de minha vida
para ele, e o que recebi em troca? Era um desastre na cama,nunca me fez gozar!
─ Então temos que planejar bem, ele refletiu. ─ Tem que parecer acidente.
Inicialmente, você faz um seguro em nome dele, colocando você como
beneficiária. Depois a gente planeja o sumiço dele direitinho.
─ Isso mesmo, um seguro bem legal. Ele adora
praia, mar, nadar, mergulho, essas coisas doidas assim, ela lembrou.
─ Isso facilita as coisas. Um corpo no mar, um
afogamento, cheio de testemunhas... ─ ele filosofou. ─ Tenho um amigo que tem
lancha, e também mergulha...
E assim se passaram os dois anos, até aquele momento em que ela
telefonou para o marido. Marcaram o dia e a hora do encontro. Seria no
apartamento dela.
Ela decidiu que iria conversar sozinha com o marido, tentaria uma
reaproximação, ou algo assim, de forma que pudesse manobrá-lo.
Gustavo estava mais interessado em pegar alguns objetos seus que sabia
ainda estarem lá, entre eles um facão tipo rompe-mato, feito sob encomenda por
um artesão, verdadeira obra de arte. Objeto mais de decoração que de utilidade,
pois, embora tivesse uma ponta bem aguda, não era afiado.
Chegou uma hora adiantado. O apartamento, no décimo quinto andar do
prédio, com uma vista maravilhosa para a enseada, ocupava metade do andar. Era
bem projetado, com a área de serviço isolada da área social e distante da área
intima. O único senão, na opinião de Neusa, era o fato de que a varanda do
quarto principal era ligada com a do vizinho, separada apenas por uma fina
parede e tendo no lado de fora uma jardineira espaçosa sem divisão.
Olavo estava curtindo o verão brabo apenas de cueca samba-canção,
fuçando nos armários no quarto da empregada, onde Neusa atochara os objetos
remanescentes do marido. “O desgraçado vem buscar de conta-gotas essa tralha”,
vivia reclamando. E, como estava entretido, não ouviu a campainha tocar, nem a
conversa entre eles.
Gustavo admirou-se ao ver, na porta, três trancas, além da fechadura.
─ Andaram fazendo arrastões aqui nos prédios,
coloquei isso para me prevenir, Neusa explicou, trancando todas as trancas
cuidadosamente, duas voltas cada chave. Em seguida, pegou o chaveiro e colocou
sobre um aparador, ao lado da entrada, onde estavam dois celulares. Enquanto
ela trancava, ele se observou no espelho colocado na parede defronte ao
aparador.
Ela o conduziu pelo curto corredor, até a sala de visitas.
─ Porque você veio tão cedo? ─ cobrou ela, irritada.
─ Não tinha nada para fazer, então resolvi
antes. Por que? Estou atrapalhando alguma coisa importante? ─ Ele
retrucou, cínico.
─ Não, não, apressou-se ela a responder. ─ É que não tive tempo de
fazer um café.
─ Não precisa se preocupar com isso. Você
disse que queria conversar sobre a separação. Pode falar que estou ouvindo, ele
falou, jogando-se no sofá.
─ Bem, já estamos separados há quase vinte
anos, e se eu resolver casar outra vez... ─ disparou ela.
─ É muito simples: você vai ao cartório onde
nos casamos, pede o divórcio, o cartório me intima, vou até lá, fazemos a
divisão dos bens, você paga as custas, o tabelião nos divorcia e estaremos
ambos solteirinhos da silva de novo.
Ela titubeou:
─ Bem, não é exatamente isso que estou pensando...
─ tentou consertar. Viu que tinha começado da forma errada. ─
Bem... sabe... eu estava pensando se... será que... não tinha um... um jeito de
a gente...
─ Se
reconciliar? Você quer a reconcilição? É isso?
─ É! É
isso mesmo! ─ ela
disparou.
Ele levantou-se. Em pé, na
frente dela, ela teve que levantar o rosto para olhá-lo nos olhos. Ele era mais
alto cerca de vinte centímetros.
─ Não
acredito! Você me faz viajar mil e quinhentos quilômetros para me dizer que
quer reconciliar, depois de me chutar e me humilhar meia dúzia de vezes? ─
Sua voz saiu em tom mais alto que o normal, e irada!
─
Espera! Vamos conversar...! ─ ela
tartamudeou.
─ Ora,
faça-me o favor! Tenho coisas mais importantes para fazer na vida! ─
Ele estava irado.
Ela largou-se sobre o sofá. Para
variar, fizera tudo errado, de novo. Ergueu o olhar, quase suplicante, para
ele. Não sabia o que falar, não sabia como consertar a situação. Ele estava
ali, em pé, à sua frente, parecendo um gigante, com as mãos na cintura e o
rosto explodindo de raiva...
─
Querida, veja a maravilha que achei...! ─
a voz veio da porta que dava acesso à área de serviço, junto com o som de
passos apressados.
Olavo surgiu na porta, com
facão rompe-mato estendido à frente. Vinha andando apressado e desajeitado. O
chinelo de borracha enroscou no tapetinho colocado na entrada, desiquilibrando-o.
Seu peso de cento e cinquenta quilos de banha, por força da inércia, jogou-o em
direção às costas de Gustavo.
Assustado com a movimentação, o
homem voltou-se, a tempo de ver aquela avalanche humana arrojando-se sobre ele,
o facão em riste como a proa de um navio quebra-gelo. Instintivamente, jogou-se
para o lado, caindo sobre a poltrona. Viu, horrorizado, aquela massa de carne
desabar sobre a delicada mulher, o aço penetrando no seu peito e o sangue
jorrando no chão de lajotas claras.
Apavorado, Gustavo pulou da
poltrona em direção à porta. Pegou o molho de chaves no aparador e tentou
desesperadamente enfiar uma delas numa fechadura. Pelo espelho, viu Olavo
levantar-se, com o facão na mão, todo sujo de sangue. Pegou um dos celulares
que estavam no aparador e desembestou a correr para porta que levava à área de
serviço. Atravessou a cozinha em direção à porta de serviço, na lavanderia.
Três trancas protegiam a porta! Sabia que teria que enfrentar aquele monstro.
Voltou para a sala. Otávio havia escorregado no sangue derramado no chão, e
tentava levantar-se de novo.
Gustavo pegou uma fruteira de
acrílico de sobre a mesa, lançou em sua direção e passou por ele correndo, desesperado. No hall de
acesso à área íntima, jogou-se para dentro do quarto do casal. Uma vez lá,
fechou a porta com brutalidade, puxando uma cômoda que estava ao lado,
escorando-a. Depois, empurrou a pesada cama de casal, para reforçar a escora.
Em seguida, pegou o celular, foi para a varanda e teclou 190. Quando atenderam,
ele gritou:
─ Socorro! Tem um assassino no meu
apartamento!
No outro lado da linha, a
telefonista pediu que ele se acalmasse e contasse o que estava acontecendo. Ele
descreveu em rápidas palavras o sucedido. E completou:
─ Estou
entrincheirado no meu quarto, mas não sei por quanto tempo a porta vai aguentar!
Ele está esmurrando a porta! Socorro! Venham logo, por favor!
─ Já
anotei seu endereço, e estou mandando uma viatura para aí. Tem como o senhor
abrir a porta?
Nisso, a vizinha do apartamento
ao lado, ouvindo os gritos e a conversa telefônica, apareceu na varanda. Era
uma senhora de idade avançada, muito simpática.
─ Se
você quiser, posso abrir a porta por fora, meu filho. É só você me dar a chave.
Ele informou à atendente da
policia a possibilidade de abrir a porta. Olhou para baixo e viu a viatura
encostar em frente ao prédio. Logo em seguida, veio outra. Os policiais
entraram correndo no prédio.
No quarto, Gustavo ouvia,
apavorado, Olavo bater na porta com o facão, e gritar para que a abrisse. Se
ele conseguisse entrar, Gustavo ia pular para a varanda da vizinha.
Os moveis que escoravam a porta
começaram a ceder. Ele estava conseguindo empurrá-los. De repente, Gustavo
ouviu uma voz ao seu lado:
─ Você
é o Gustavo?
Olhou.
Era um policial.
─ Sou
eu mesmo.
─ Chega
para lá que eu vou entrar, ele mandou.
O homem obedeceu. Rapidamente, o
policial contornou a parede, e apoiando o pé na floreira, chegou na varanda.
Nesse instante, a porta do quarto abriu-se. A figura grotesca de Olavo, suja
de sangue e segurando o facão, apareceu na soleira. O policial puxou a arma e
mandou-o largar o facão. Otávio avançou sobre ele.
Na sala, os outros policiais já
entravam no apartamento. Deram a mesma ordem, mas o assassino continuou
avançando. O policial que estava no quarto fez um disparo. O projétil atingiu o
peito de Olavo, que ainda deu três passos antes de desabar no chão, morto.
FIM